sábado, 5 de novembro de 2011

Sultão e Miúda

          Se ela estivesse aqui e soubesse falar, com certeza, me diria: "Coloca meu nome primeiro."
          Um dia ela chegou, pele e osso. Mais ossos que pele, mais pele que pêlos e um par de orelhas que não tinham fim. O nome escolhido não poderia ser outro - Miúda. Na verdade: Miúda Miudíssima Miudésima. Algo me dizia que ela era digna de um sobrenome. Havia um quê de nobreza por trás daquele aspecto, que no momento, era apenas digno de dó.
          Ele já tinha seis anos, um rottweiler dulcíssimo como nunca vi igual, assim era Sultão.
          Cheguei com aquela coisa estranha, mostrei-a pro simpático cão e lhe expliquei que ela passaria a fazer parte da família. Olhou-a com espanto, mais por seu aspecto do que pelo fato de ser uma gata. Era um Gremlin muito bem alimentado após a meia-noite.
          Dali seguiram-se dias de muitos cuidados e remédios. O veterinário chegou a desenganá-la.
          Mas Miuda era teimosa, mostrou isso desde o início. Foi tendo uma recuperação fantástica e, logo virou a dona do quintal. Deixava claro pra Sultão que ali ela mandava. Ele, extremamente educado, fazia todas as vontades daquele ser que, de Gremlin estava cada vez mais parecido com o Garfield. Tanto no tamanho quanto na preguiça e prepotência.
           Seu pelo era lindo, muito macio, rajado de nuanças de cinza com um leve amarelado, fora a enorme barriga de pêlos branquinhos, onde ninguém poderia pensar em colocar a mão ou ... seria vítima daquelas afiadas unhas. Não que se precisasse de muito pra isso. Bastava ela acordar de mau humor que, com certeza, alguém levaria uns arranhões. Geralmente Sultão ou eu. A escolha não era por conta do tamanho do afeto que aquela gorducha tinha por nós, levava a primeira quem estivesse mais próximo.
          Dia da vacina. Meu deus!!!, que tortura. Primeiro - não deixar que ela percebesse que seria vacinada. Segundo - não deixá-la sair de casa, pois, com certeza ela pressentiria as agulhadas e, uma vez fora, só retornaria à noite, quando sabia já não estar a mercê do veterinário. 
          Com Sultão tudo era tranquilo, eu colocava a coleira em seu pescoço, firmava o contra a grade do canil (grade de arames finos que assustava qualquer um quanto a sua fragilidade diante do tamanho daquele cão ... mas era Sultão, sabia respeitar seus limites) e pronto, Dr. Carlos aplicava a vacina e recebia festa do ser tão educado e gracioso.
          Ora de vacinar a onça. Primeiro enrolar suas patas com grossa toalha, depois colocar a focinheira, segurá-la bem forte. Após aplicada a vacina, eu tinha que ser rápida, desenrolá-la da toalha ao mesmo tempo que me afastava pra trás. Pois se ela visse alguém pelo caminho, com certeza iria fatiá-lo. Ela saía correndo, desesperada e já encontrava a porta da cozinha aberta. Ninguém iria querer aquele ser enfurecido dentro de casa.
          Passava o resto do dia deitada no quintal, nos olhando com muita raiva. À noite, quando Sultão era solto novamente, ela se escondia atrás do pé de acerola e assim que ele passava pulava em suas pernas dando mordiscadas. Sultão só era capaz de rosnar pra Miuda quando ela resolvia investir em sua vasilha de ração, e mesmo assim, essa dava um pequeno passo e ficava sentada olhando-o.
          Eles se amavam, eram grandes companheiros.
          Aos treze anos, nosso velho cão começou com complicações, aos poucos foi perdendo a firmeza das patas traseiras e, como se soubesse, Miúda já não pulava mais nelas, pois ele não podia se esquivar como sempre fizera.
          As complicações se arrastaram pouco mais de um ano.
          Um dia cheguei em casa por volta das 22:00, ele estava deitado embaixo da goiabeira, como sempre gostava, dei-lhe boa noite, seu semblante era tranquilo. Pela manhã, minha mãe me acordou com lágrimas nos olhos. Sultão havia partido. Estava deitado no mesmo lugar onde, sem saber, eu me despedira. Tinha uma expressão serena.
          Naquele dia Miúda não comeu. Ficou no jardim da frente. À noitinha consegui leva-lá até onde estava sua comida. Deixou que eu a pegasse no colo sem fazer qualquer objeção, coisa rara, ela detestava que a pegassem no colo. Comeu um pouco.
          No dia seguinte não a vimos. Dois dias ... três dias se passaram e nada.
          Fiquei meses achando que estava ouvindo seu miado anunciando a volta. Mas era só minha vontade tomando voz. Miúda se foi. E foi pra junto de seu amigo. Os gatos têm essas atitudes. Difícil de se compreender. Mas ... era uma amizade inusitada e forte.
          Agora são duas estrelinhas. Uma que corre e saltita sem parar, a outra ... escarrapachada deixando bem claro que ali ... é ela quem manda.     
         
         

2 comentários:

  1. Ai q dor no peito....sempre lembro dele...

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  2. Vi, como sempre vc me faz chorar,não por tristeza mas por lembranças maravilhosas de nossas vidas. Esses nossos amigos queridos sempre farão parte de nossas conversas e lembranças.
    Sultão e Miúda, sempre em nossos corações!

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